Hoje, 25 de agosto de 2016, ao ler uma matéria da Folha de S. Paulo sobre moradores em situação de rua (disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/08/1806716-agentes-de-haddad-atropelam-regra-ao-retirar-de-praca-morador-de-rua.shtml) lembrei de uma crônica famoso que custou caro ao seu autor, o grande cronista paulistano Lourenço Diáferia. Eu, anquela época, pacientemente lia e recortava essas cronicas e as colava num caderno. Pena que não saberia que um dia existira uma máquina chamada escaner que poderia ter preservado esse material. Por contingências várias tive que me desfazer dessas raridades. Mas na internet achei uma cópia dessa crônica que foi considerado ofensivo às forças armadas, e Diaféria foi imediatamente preso e enquadrado na famosa Lei se Segurança Nacional.
Pode não ter relação o caso da matéria de hoje da FSP com a cronica, mas vale dar uma lida nela:
Herói. Morto. Nós.
…
*Lourenço Diaféria
Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.
O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.
Que nome devo dar a esse homem?
Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.
Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo.
Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói, como o santo, é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.
O herói redime a humanidade à deriva.
Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.
Está morto.
Um belíssimo sargento morto.
E todavia.
Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.
O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel – onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer – oxidou-se no coração do povo.
O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.
O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.
No instante em que o sargento – apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher – salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.
Esse sargento não é do grupo do cambalacho.
Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.
É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.
O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.
Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.
É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.
Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.
Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.
E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis – tarde demais.
*Lourenço Diaféria foi “absolvido” em 1979. Morreu em 2009.
A crônica foi publicada em 1º de setembro de 1977, no Jornal Folha de são Paulo.
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