A herança de 1968, a questão da ideologia e a permanência do pensamento utópico
Gilberto da SILVA[1]
Resumo: O presente estudo tem como suporte as questões sobre utopia e ideologia que Fredric Jameson discute no texto A Política da Utopia. Estabelece uma discussão a partir das convulsões políticas e culturais do maio de 1968 que teve em Guy Debord e na Internacional Situacionista seu ponto culminante. As lições evocatórias do maio de 68, momento da crítica da sociedade do espetáculo, do espetacular concentrado, do capitalismo burocrático (stalinismo) e do espetacular difuso (da abundância do capitalismo) e a sua permanência no nosso imaginário coletivo demarcaram as novas necessidades e formas de encarar e pensar a sociedade. Estas lições nos ensinaram de que é possível superar a ideologia do conformismo, o fundamentalismo do mercado e para além da sociedade do espetáculo e da ansiedade, sonhar (e lutar) por uma sociedade mais justa, menos excludente, de respeito à diferença. Podemos reinventar o social: sonhar a utopia?
Palavras-chave: sociedade do espetáculo, ideologia, utopia, política, comunicação.

Da ebulição do desejo à esperança fraudulenta
Era maio. O tempo estava muito bonito, é verdade. Não conhecíamos Aids, nem degradação climática nem provações da globalização e do desemprego. Éramos prometéicos. Tudo parecia possível. O futuro nos pertencia. Daniel Cohn-Bendit, em entrevista. Rebeldia LTDA. Folha de São Paulo. Mais! p. 14 . São Paulo, 4 de março de 2008.
Cohn-Bendit que viveu aqueles momentos de ebulição e que mais tarde fundou o Partido Verde alemão explicitou bem a fotografia daquele 1968 em que parecia que o mundo ia explodir numa convulsão de manifestações políticas, comportamentais e culturais. A paixão e o desejo foram à luta e ganharam as ruas. Depois de 1968 vai se desenvolver na França e no mundo o que chamamos de “os novos movimentos sociais” (homossexuais, feminismo, anti-racismo etc) e o que chamamos dos sem: “sem terra”, “sem teto” ou o movimento dos “sem nada”. É o momento das “transversalidades”[2][1] na organização social, instante da organização das chamadas “minorias”, das novas relações entre grupos culturais e regimes disciplinares. As coletividades desencadeiam diferentes modalidades de representação e de mediação política. De acordo com Jameson os “impulsos utópicos” deste período “produziram uma série relevante de movimentos micropolíticos (de vizinhança, de raça, étnicos, de gênero e ecológicos) cujo denominadores comuns são formas diversas (no mais das vezes anticapitalistas) da problemática reemergente da Natureza”. (2002, p.177)
Podemos talvez classificar como o primórdio moderno da expressão do inconformismo. Neste contexto histórico, Guy Debord, autor do clássico A sociedade do espetáculo, surge como um expoente do movimento crítico e não pode ser dissociado de outro fenômeno francês dos anos 60, a “Internacional Situacionista”. A Internacional Situacionista (IS) foi um movimento contestador liderado por Debord. Surgido em 1957, a IS teve atuação marcante nos acontecimentos de 1968: [“ocupe as fábricas”, “todo poder aos conselhos operários”, “acabe com a sociedade de classe”, “abaixo a sociedade espetacular mercantil”, “acabe com a alienação”, “acabe com a universidade”]. A IS foi dissolvida em 1972, terminando no que Perry Anderson (1999:83) classifica como a “última das vanguardas históricas”.
O livro A sociedade do espetáculo foi lido com avidez pelos jovens rebeldes e quase se tornou um programa para a revolução de maio de 68. Em seu texto Debord adverte o mundo chamando a atenção para o fenômeno do espetáculo que se torna o reino da mercadoria.
Debord realiza crítica da sociedade do espetáculo, do espetacular concentrado, do capitalismo burocrático (stalinismo e fascismo) e do espetacular difuso (da abundância do capitalismo, característico da sociedade de massa contemporânea) em que o mercado usa a mídia para a consolidação do fetichismo da mercadoria. A obra A sociedade do espetáculo realiza uma contundente crítica ao capitalismo baseada na dialética hegeliana.
Herbert Marcuse até então um desconhecido e apenas lido em pequenos círculos na Califórnia, Roma, Berlim e Paris, também influenciou a juventude naquele período. O foco central do movimento era a academia. A universidade era concebida para ser a principal fonte de legitimação do poder. Portanto, o ataque à universidade se justificava pela negação da ordem. Marcuse defendeu a invasão das universidades ao contrário de Adorno que teve que chamar a polícia em 1969 quando os estudantes ameaçaram invadir o Instituto em que dava aulas. Fato que gera discussão até hoje.
De imediato, os anos finais de 1960 e os primeiros anos da década de 1970 proporcionaram um florescimento de vários grupos revolucionários todos com a forte presença da intelectualidade e de setores mais avançados da Igreja.
Mas miremos no exemplo e nas conseqüências do maio de 68 na sociedade brasileira
No aspecto político, o que está em jogo no debate sobre 1968 não é tanto a interpretação de suas causas e consequências, a crítica indispensável ao que se passou, mas a luta em novos termos entre os que se acomodaram à nova ordem mundial e aqueles que herdaram o espírito de 1968. Esses apostam que é possível e necessário construir uma nova ordem, em que os valores fundamentais não sejam os do lucro, mas os da convivência e realização plena dos seres humanos, em suas relações entre si e com a natureza, que se expressam em lutas pela preservação do meio ambiente, da igualdade ente os sexos, as culturas e as etnias, sem contar os embates renovados por um socialismo democrático. (RIDENTI, 2008 p.5)
Paulatinamente os grandes nomes de 1968/70 foram incorporados ao sistema/estado. Os ideais foram sendo absorvidos pelo sistema capitalista. O que vimos também foi a absorção de idéias. A visão revolucionária foi ficando cada vez mais distante e o espaço para o pragmatismo sendo aberto a cada nova notícia vinda do leste europeu. Predominou uma visão de que a transformação da sociedade capitalista [em alguns casos até permaneceu a dúvida se esta transformação é possível] não se daria de uma hora para outra. Mata-se a idéia da revolução pura e permanece a visão de que reformas na sociedade capitalista são mais importantes do que o desejo de revolução.
Parece que aquele sentimento de revolta, sobretudo, de profunda reflexão política e social esvaiu-se praticamente no mundo contemporâneo. É o que sentimos ao observar os partidos de esquerda sendo amansados pelo sistema capitalista, sindicatos comodamente integrados ao sistema, operários domesticados e formas de representação política que não respondem mais aos anseios dos cidadãos. Por outro lado, as revoltas espasmódicas e aleatórias, o crime partidariamente organizado e miséria avançam numa proporção sem limites.
Todas estas entidades reivindicativas que outrora apontavam para uma esperança de mudança, ao participarem do círculo do Poder, tornaram-se reguladoras do sistema e desistiram da transformação revolucionária da realidade. Incorporadas à Sociedade do Espetáculo, como podemos exemplificar através dos showmícios de Primeiro de Maio, dos concursos e sorteios etc, em último caso – quando cobrados um posicionamento mais esquerdista – preocupam-se tão somente com a reforma do sistema político social. Todas estas imagens – algumas nitidamente espetaculares – reforçam a tendência de que a sociedade não precisa mais de revolução no estilo clássico, tudo querendo nos fazer crer que
uma política que queira mudar radicalmente o sistema será designada como utópica – com a nuança direitista de que o sistema (hoje compreendido como livre mercado) faz parte da natureza humana; que qualquer tentativa de mudá-lo será acompanhada da violência; e que o esforço para manter as mudanças (contra a natureza humana) exigirá a ditadura. (JAMESON, 2006a, p.159)
Após a década de 1960, a empatia do jovem com o país esvaiu-se e com isso uma crescente leva migratória carregou a juventude para outras terras em busca de outros sonhos. Nossa juventude, com a ajuda midiática, de pronto abandonou as faixas e cartazes da Revolução e cética perdeu a esperança. Em alguns momentos atinge o ápice da obscuridade com jovens cometendo crimes cada vez mais cedo, guerras de gangs, tédio, drogas, violência e demais acontecimentos causados por uma sociedade baseada no consumismo. O sonho da revolução que incendiou uma geração de jovens, de corações e mentes no mundo, no Brasil deixou de ser utopia para ser substituído por um profundo antiutopismo, forte, preconceituoso, pragmático. Um realismo antiutópico ancorado nas relações políticas tipo PT x PSDB.
Por todo lado, em todos os lugares encontramos a presença do mercado, da homogeneização, sujeitos desfigurados, dominados. Tudo isto parece – ou nos fazem parecer?- que estamos procurando um Pai Iluminado, uma Providência Divina e Celestial que seja capaz de nos proporcionar a plena felicidade, que nos salve e dê prazer. Enquanto esta satisfação, este gozo profético não vem, vamos nos contentando com outros recursos mais terrenos: drogas, funk, sexo e shopping.
Para continuarmos crentes no slogan “o sonho não acabou” devemos sempre buscar por detrás do delírio fosforescente do mundo midiático um sujeito que teima continuar sonhando, engajado em alguma luta social, pois a ideologia dominante pode até incorporar a forma, mas nunca totalmente o conteúdo! Os progressistas sonham, os revolucionários sonham e isto é natural. Só os imbecis e os conservadores não sonham. Entretanto, qual é, então, a herança de 1968 para os dias atuais? Segundo Löwy pode-se concordar com o historiador inglês Perry Anderson que afirmou que movimento de 68 foi duravelmente vencido e que vários de seus participantes e dirigentes tornaram-se conformistas, e que o capitalismo – em sua forma neoliberal – tornou-se, no decorrer dos anos 1980 e 1990, não somente triunfante, mas como o único horizonte possível.
Mas, parece-me que assistimos, no transcorrer dos últimos anos, à ascensão, à escala planetária, de um novo e vasto movimento social, com um forte componente anti-capitalista. Evidentemente, a história nunca se repete, e seria, também, em vão o absurdo de atingir um “novo Maio de 68” em Paris ou em outro lugar: cada nova geração rebelde inventa sua própria e singular combinatória de desejos, utopias e subjetividades.
A mobilização internacional contra a globalização neoliberal, inspirada pelo princípio que “o mundo não é uma mercadoria”, que tomou as ruas de Seattle, Praga, Porto Alegre é – inevitavelmente – muito diferente dos movimentos dos anos 60. Ela está longe de ser homogênea: enquanto que os participantes mais moderados ou pragmáticos acreditam, ainda, na possibilidade de regular o sistema, uma larga secção do “movimento dos movimentos” é, abertamente, anti-capitalista, e em seus protestos pode-se encontrar, como em 68, uma fusão única entre as críticas romântica e marxista de ordem capitalista, de suas injustiças sociais e de sua avidez mercantil. Pode-se, indiscutivelmente, perceber certas analogias com os anos 60 – a poderosa tendência anti-autoritária, ou libertária – mas, também, diferenças importantes: a ecologia e o feminismo, que estavam, ainda, nascendo em Maio de 68, são, agora, componentes centrais da nova cultura radical, enquanto que as ilusões sobre o “socialismo realmente existente” – quer seja Soviético ou Chinês – praticamente desapareceram. (LÖWY, 2008)
Ernest Mandel, economista belga autor de obras notáveis e de aguda análise política e de fundamentais escritos econômicos, entre eles o clássico Tratado de Economia Marxista e alguns anos depois o Capitalismo Tardio que inspirou Fredric Jameson em Pós-Modernismo – a lógica cultural do capitalismo tardio propõe que somente uma revolução socialista mundial, com o advento de uma sociedade sem classes é que confirmará na prática a validade da teoria marxista revolucionária.
Se acreditarmos que o capitalismo é nocivo, apesar das suas realizações incontestáveis, que desencadeia periodicamente catástrofes cada vez mais graves – guerras, crises econômicas, fascismo, catástrofes ecológicas – se acreditarmos que essa nocividade deve ser eliminada para assegurar o bem-estar permanente de todos e todas para evitar a recaída da humanidade na barbárie, seja o desaparecimento físico do gênero humano, então desejemos a revolução e trabalhemos pacientemente para tornar vitoriosa. Não há outro meio de acabar com o regime capitalista. (MANDEL, 1989)
Portanto, dentro desta visão, devemos defender um modelo de socialismo que seja totalmente emancipador em todos os terrenos da vida. Esse socialismo deve ser autogestionario, feminista, ecologista, radical-pacifista, pluralista, estendendo qualitativamente a democracia internacionalista, pluripartidarista chegando à aplicação integral do princípio de “cada um segundo as suas capacidades” e a cada “um segundo as suas necessidades” e pelo desaparecimento da divisão social do trabalho e do término da separação entre trabalho manual e trabalho intelectual. Prega assim, o desaparecimento progressivo de categorias mercantis, o fim das classes sociais e das estruturas mentais resultantes do passado de desigualdade e de luta de classes.
Uma visão socialista – ainda uma utopia – é a chamada sociedade ecossocialista que entende a necessidade de romper com a idéia restrita de revolução com uma recusa da visão do social que anula o indivíduo.
As lições evocatórias do maio de 1968 e a sua permanência no nosso imaginário coletivo nos levam a significados múltiplos, mas fundamentalmente nos levam a reconhecer que elas nos prepararam de certa maneira para viver na época da globalização demarcando novas necessidades e novas formas de encarar e pensar a sociedade. Proporcionou o sonho de sonhar por uma sociedade mais justa, menos excludente, de respeito à diferença, mas deixou uma mais fundamental: a possibilidade de que podemos reinventar o social. E assim podemos fazê-la com o auxílio da teoria critica. E a teoria critica, dialeticamente, entende que um pensador que respeite a dinâmica da transformação, não faz e nem pensa fazer uma apologia nua e crua de um sistema político. Portanto, este indivíduo que pensa dialeticamente sempre será um questionador e nunca um sujeito petrificado.
Ideologia e Progresso
Nossa esquerda, basta analisar o seu discurso, traz em seu bojo a ideia iluminista do progresso linear da História, de que esta avança em direção a um progresso tão certo quanto indefinido. A esquerda assimilou o modelo de desenvolvimento pautado no livre mercado, na propriedade privada em detrimento dos ideais coletivos, na expansão ilimitada do consumo. Prega o desenvolvimento ilimitado dos recursos naturais como o incentivo da produção de energia não renovável, uso predatório do solo para a agropecuária e aperfeiçoa o chamado Consenso de Washington na garantia dos capitais internacionais, pagamento regular das dívidas. Tudo em nome da “boa governança”.
O conceito de progresso na visão adorniana perdeu a sua totalidade, diluído pela reificação transformando o homem em mercadoria.
A naturalização dos homens hoje em dia não é dissociável do progresso social. O aumento da produtividade econômica, que por um lado produz as condições para um mundo mais justo, confere por outro lado ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam uma superioridade imensa sobre o resto da população. O indivíduo se vê completamente anulado em face dos poderes econômicos. (ADORNO/HORKHEIMER, 1985, p.14)
Debord discute a ideologia em A sociedade do espetáculo, especificamente no capítulo IX intitulado A Ideologia Materializada como sendo
a base do pensamento duma sociedade de classes, no curso conflitante da história. Os fatos ideológicos não nunca foram simples quimeras, mas a consciência deformada das realidades, e, como tais, fatores reais exercem uma real ação deformante; tanto mais que a materialização da ideologia provocada pelo êxito concreto da produção econômica autonomizada, na forma do espetáculo, praticamente confunde com a realidade social uma ideologia que conseguiu recortar todo o real de acordo com o seu modelo. (Debord,1997, p.137)
Para Debord a ideologia é realizada no espetáculo “o espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta na sua plenitude a essência de todo sistema ideológico: o empobrecimento, a sujeição e a negação da vida real” (1997, p.138) onde o sujeito torna-se incapaz de construir a sua realidade, “apagando” e “esmagando” o seu Eu. A sociedade do espetáculo roubou do sujeito a sua especificidade, a individualidade. O espetáculo, segundo Debord “é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (1997, p.25). Entretanto, não apenas um mero conjunto de imagens e sim “uma relação social entre pessoas mediada por imagens” (DEBORD, 1997, p.14).
Há muito tempo Guy Debord já havia nos descrito como uma sociedade de imagens consumidas esteticamente. Foi ele quem nos chamou a atenção para essa linha de junção que ao mesmo tempo delimita e liga a cultura e a economia. Falamos muito – sem ir ao fundo da questão – do peso cada vez maior sobre os bens de consumo na política, nas idéias e até mesmo em nossas emoções e nossa vida privada; é preciso acrescentar que nesse processo, nos nossos tempos, é também um processo de ´estetização` – que os bens de consumo são também consumidos “esteticamente”(JAMESON, 2001, p.139)
Para Jameson a questão da ideologia “não é muito complicada: ela parte da convicção de que estamos todos ideologicamente situados, todos algemados a uma posição-tema ideológica e somos todos determinados pela classe e pela história da classe” (2006a p.169). A ideologia é histórica e classista.
Devemos abandonar qualquer perspectiva utópica?
O controle do presente teima em nos arrematar para a melancolia ou para o ceticismo e ou pessimismo. Esta é inclusive a critica à escola frankfurtiana. É possível quebrar o ciclo vicioso da dominação?
Adorno, que não fugiu ao debate sobre o progresso e a utopia, formula algumas questões em Mínima Moralia:
À pergunta pelo objectivo da sociedade emancipada recebem-se respostas como a realização das possibilidades humanas ou o enriquecimento da vida. Tão ilegítima a inevitável pergunta quão inevitável a repulsa e o triunfo da resposta, que faz recordar o ideal socialdemocrata de personalidade dos barbudos naturalistas dos anos noventa, que queriam gozar a vida. […] No ideal do homem liberto, cheio de força, criativo, infiltrou-se o feiticismo da mercadoria que, na sociedade burguesa, traz consigo a inibição, a impotência, a esterilidade do sempre igual. (ADORNO, 2001, p.160-161)
Para Jameson o declínio da ideia da utopia “é um sintoma histórico e político” que merece melhor análise. Numa clara referência a Adorno, Jameson considera que a Utopia “deveria ser caracterizada pelo afastamento daquele impulso interior de auto preservação, uma vez que ele teria se tornado desnecessário” (JAMESON, 2006b. p.270). O teórico americano busca inspiração nas idéias utópicas de Bloch, apontando para a reatualização da dimensão utópica para a filosofia marxista, sem dogmatismo.
Antes de prosseguir com Jameson, lanço aqui um pequeno trecho de Ernst Bloch no início de sua monumental trilogia sobre o Principio Esperança
A falta de esperança é, ela mesma, tanto em termos temporais quanto em conteúdo, o mais intolerável, o absolutamente insuportável para as necessidades humanas. É por isto que até mesmo a fraude, para que seja eficaz, tem de trabalhar com a esperança lisonjeira e perversamente estimulada. (BLOCH, 2005, p.15)
Profeticamente o pensador alemão já entendia que a esperança não pode ser manipulada já que a esperança fraudulenta é “uma das maiores malfeitoras” contra o medo. Nada mais atual.
Para contragosto tanto da direita, quanto da esquerda mais radical, Jameson enaltece as vantagens de um utopismo que segundo ele parece estar recuperando sua vitalidade e sua perspectiva energizante visto que as alternativas históricas ao capitalismo (principalmente o chamado “socialismo real”) se provaram inviáveis e impossíveis. Jameson reconhece que a relação entre Utopia e política continua não resolvida até hoje, mas em linhas gerais prega que a Utopia parece ter recuperado um certo élan vital como slogan político e como horizonte ideal.
Para Jameson só a idéia da Utopia é que possibilita o surgimento de uma nova era. O que, em certo grau pode gerar um certo “conformismo” com a realidade existente.
Para Jameson é necessária uma nova práxis, buscar novas alternativas e realizar um novo mapeamento cognitivo da sociedade para que, através de uma nova dimensão utópica, seja possível realizar o enfrentamento necessário aos desafios da pós-modernidade. Jameson acredita que é preciso manter a chama acessa na luta por um futuro melhor e que a arte, por exemplo, pode contribuir com este impulso.
Jameson reconhece o importante papel que Marcuse teve na questão da necessidade da reinvenção da utopia “faz parte do legado dos anos 60 que não pode jamais ser esquecido em qualquer reavaliação daquele período e de nossa relação com ele”. (2002, p.176)
Marcuse pregou em Eros e Civilização a possibilidade de uma tecnologia maravilhosa que eliminaria a mão-de-obra alienada. O projeto utópico de Marcuse visa à libertação da humanidade, para ele numa sociedade repressiva tende-se para a eliminação do pensamento utópico. Então passemos a pensar a utopia como algo realizável, que a partir do enfrentamento crítico da realidade possa transformar a sociedade do espetáculo. O fim que nos impõem hoje pode não ser o fim.
Provocativo, Jameson questiona: “uma das idéias centrais da década de 1960 (de Marcuse) não foi a possibilidade de uma tecnologia maravilhosa que eliminaria a mão-de-obra alienada do mundo todo?”.(JAMESON 2006a, p.170). Para Jameson, a obra de Marcuse “lança os fundamentos para a possibilidade do pensamento utópico” através da valorização da memória: segundo ele, a memória da satisfação está na origem de todo pensamento, e o impulso para recuperar a satisfação passada é a força oculta por detrás do processo de pensamento. É somente através dessa restauração do conteúdo recalcado da memória que a lembrança pode se traduzir em “ação histórica” – a memória teria, neste sentido, um papel político. O tempo só perde seu poder repressivo quando a memória do passado é resgatada.
A energia primária da atividade revolucionária deriva dessa memória de uma felicidade pré-histórica. A perda ou repressão do sentido de conceitos como felicidade e desejo toma a forma de uma espécie de amnésia ou embotamento desmemoriado, que a atividade hermenêutica, a estimulação da memória como negação do presente, como projeção de utopia, tem como função dissipar, restaurando nossos impulsos e desejos vitais. (JAMESON, 1985, p.92)
Jameson acredita que os utopistas não propõem somente o ato de imaginar estes sistemas alternativos. A forma utópica é por si mesma uma significativa reflexão sobre a diferença, sobre a alteridade radical e sobre a natureza sistêmica da totalidade social.
Não é possível imaginar qualquer mudança fundamental na nossa sociedade que não tenha se anunciado primeiro, liberando visões com “tantas faíscas da cauda de um cometa” como nos fala alegoricamente Jameson. A transformação, aqui inspirada em Marx, só é possível ser conduzida
por um movimento prático, por uma revolução; esta revolução é necessária, entretanto, não só por ser o único meio de derrubar a classe dominante, mas também porque apenas uma revolução permitirá à classe que derruba a outra varrer toda a podridão do velho sistema e tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novas. (MARX, 1986, p.109)
Por isso, a dinâmica fundamental de qualquer política utopista (ou de qualquer utopismo político) se colocará sempre na dialética entre Identidade e Diferença, na medida em que esta política visará imaginar e, por vezes até realizar um sistema radicalmente diverso do atual.
Portanto, a utopia deve ser vista como uma forma de ação e não como um objeto meramente interpretativo da realidade. A teoria não pode prescindir da prática e por mais que muitos ainda torçam o nariz ainda vale a máxima marxiana expressa nas Teses sobre Feuerbach (MARX, 1986, p.128): “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo”.
1968 Heritage, The Ideology issue and the permanency of utopian thought
Summary: The actual studies support the issues about utopian and ideology discussed in Fredric James’ book, A Política da Utopia. A discussion is established from political and cultural convulsions in the Guy Debord and the International Situacionista in May, 1968. The lessons that were evoked in 1968 were critics about the spectacle society, the spectacular concentration, the bureaucratic capitalism (Stalinism) and the spectacular diffusion (from capitalism abundance). Such lessons remained in our collective imagination pointing to the new necessities and ways of facing society. These lessons taught us that it is possible to overcome the conformism ideology, the market fundamentalism, and go beyond the anxious spectacle society. It is possible to dream about a more just society, less excluding, and more respectful to the differences. Can we reconstruct the social: dream about utopia?
KEY WORDS: society of the spectacle, ideology, utopia, politics, communication.
Referências
ADORNO, Theodor W. Mínima Moralia. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2001.
ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento – fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
BLOCH, Ernest. O Princípio Esperança. Tradução Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo – comentários sobre a sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
JAMESON, Fredric. Globalização e Estratégia Política in Contracorrente. Tradução Maria Alice Máximo. Org. Emir Sader. Rio de Janeiro: Record, 2001.
_________________Pós-Modernismo – A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2002.
_________________A Política da Utopia – in: Contragolpes, org. Emir Sader; tradução Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006a.
________________Espaço e Imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios de Fredric Jameson. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. (2006b)
________________Sementes do mal. São Paulo: Ática. (1994).
LÖWY, Michel. O Romantismo revolucionário de Maio 68. Revista Espaço Acadêmico, Maringá (PR), nº 84, maio de 2008. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/084/84esp_lowyp.htm>. Acesso em 18 de setembro de 2009.
MANDEL, Ernest. – Por que somos nós revolucionários? Marxists Internet Archive. 10 de janeiro de 1989. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/mandel/1989/01/10.htm>. Acesso em 20 de setembro de 2009.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização – Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução Álvaro Cabral, 6ª edição, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
MARX, Karl. A Ideologia Alemã. Tradução José Carlos Bruni e Marcos Aurélio Nogueira, Quinta edição. São Paulo: Hucitec, 1986.
RIDENTI, Marcelo. 1968 na mira, in: Revista Teoria e Debate Especial 1968, São Paulo: Fundação Perseu Abramo, maio de 2008.
[1] Mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero. Sociólogo da Prefeitura do Município de São Paulo. Membro do grupo de pesquisa Comunicação e Sociedade do Espetáculo da Faculdade Cásper Líbero. gilberto@partes.com.br – SP – Brasil – 01310-940
[2][1] Desenvolvem-se daí várias correntes e estilos de pensar a sociedade tais como o pós-estruturalismo, desconstrucionismo, neo-história etc.






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