
Mário de Andrade
Saí desta morada que se chama O Coração Perdido e de repente não existi mais, perdi meu ser. Não é a humildade que me faz falar assim, mas que sou eu por entre os automóveis! Só na outra esquina tive um pouco mais de gratidão por meus pesares e me vi. Estava com dois embrulhos na mão.
Ambos se destinavam ao Correio e criaram em mim alguma decisão. Minha roupa cor-de-cinza riscava mal na tarde em nuvens e uma quase sensação de nudez me aparteou. Felizmente as auras vieram, batidas da várzea largada, me afagaram, me levaram a outros mundos animais em que é melhor viver.
O ônibus que tomei estava só e eu lia sem querer um artigo em francês. A França me aporrinha porque sempre o que me sobra dela são umas letras grandes, com uns dois metros de altura, em que está escrito: CONGO BELGE. Nunca pude saber donde me vem tal obsessão. É muito velha em mim e por certo anterior ao dia glorioso em que, pela primeira vez, li num livro de estudo le père e la mère.
O ônibus corria pela rua das Palmeiras, e assim que as letras francesas se recusaram a me ilustrar mais, fixando-se em “Congo Belge”, fechei os olhos pra não ler. Mas é tão desagradável andar de automóvel com os olhos vendados! Acorda a noção do perigo e não se ajusta mais o ser com a realidade. Abri de novo os olhos e fui vendo o que é viajar. Árvore, tabuleta, casa, rua, e Nós, os fabulosos.
Nesta linha de ônibus há uma encruzilhada fecunda em que uns rumam para a praça do Patriarca, outros seguem para o Correio. Esse é um momento bem feliz pra mim. Quando vou chegando lá, meu ser inteiro se apaixona, há coisa mais volúvel que automóvel!… É inútil a tabuleta do carro confessar nitidamente pra onde vai, se praça do Correio ou do Patriarca, ah, se o ônibus quisesse!… Jamais que ele quer, eu sei, jamais que ele desejará por vida minha, e disso nascem meus melhores sofrimentos. Não afirmo deseje que ele se dirija à praça do Patriarca não. Me transtornava a ternura itinerária, que, como todas as ternuras, só pode provir da certeza. Mas se o ônibus quisesse… Todos os passageiros protestariam com enormes raivas. Eu protestava também. O carro sabe disso, e, por aquela malvadez das coisas contra nós, jamais que nos permite protestar. A docilidade é a vingança das coisas inanimadas. Fico desolado e sofro com volúpia ali.
Nisto pensava com lentidão majestosa quando o ônibus parou na praça do Correio. Saltei como a primavera. No geral, quando o auto está chegando ao destino, tomo sempre as minhas precauções pra ser o primeiro a saltar, mas desta vez estava tão entregue a mim que até me assustou a chegada. Daí a vívida impressão de primavera em que flori. Agilizei-me em volições e uma elasticidade gentil moveu-me o corpo. Fiquei tão agradável que, quando pus reparo em mim, estava tomando um café.
Como é amargamente dramática a reação do bom-senso! Uma comédia curta me representava tomando aquele impensado café. Era eu, tomando café —a vítima. Era a muito mais lógica felicidade de primeiro me libertar dos embrulhos, pra depois aprovar melhormente a bebida —o vilão. E, do outro lado da cena, ainda e sempre a primavera, Ariel, Nosso Senhor, o cantador Chico Antônio, enfim, todo o desequilíbrio contra a vida.
Quando alguém não puder se vencer, disfarce lendo as tabuletas. Mas eu juro que o que badala dentro de mim e explode em apoteoses são Chico Antônio, Ariel, Macunaíma, esses entes sem nexo da primavera, que, só eles, conseguem me ofertar uma paisagem de pureza. Tudo o mais é esta vida: jardim inglês, jardim francês e a palmeirinha. Disfarcem, imbecis, leiam as tabuletas!
Eu saudava os que se riam pra mim, cedia passagem às damas, tinha piedade dos pobres, recusava bondosamente os vespertinos que os jornaleiros me davam, tomei ar de impaciência bem-humorada contra a leve nuvenzinha de poeira, quando o guarda me fez parar. Passai, veículos da grande cidade anchietana! Eu deixava passar os veículos, cedia espaço a novas senhoras e octogenários, compreendia os desocupados e me sentia vaidoso desta nossa humanidade. E como é suave registrar embrulhos no Correio… Esse ar apressadinho de trabalho, a irritação servil dos funcionários, a fatalidade imponente da compra de selos da Nação…
Criados varrem o edifício. Várias pessoas escrevem cartas pros antípodas, os repórteres buscam avidamente assuntos com que encher os jornais de azedume aprazível. E no meio daquela lufa-lufa prodigiosa, a blusa azul-cocteau de um marinheiro! Felizmente havia doze embrulhos a registrar antes dos meus, e fumei, divertidamente fumei, enquanto a consciência me afagava devagar, sussurando-me no ouvido: —Homem de bem!
Queria continuar deste jeito contando em pormenor o que fiz, vivi, senti, mas porém a intenção de entrar nalguma antologia me prende as vastidões. Fiz o que tinha a fazer, saudei mais conhecidos e, duas horas passadas da partida, eis—me de novo aqui, no Coração Perdido.





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